quinta-feira, 7 de abril de 2011

Suzane, 19 anos, bela e rica, matou por amor

* Suzane Louise Richtfen (19 anos)e seu namorado, Daniel de Paula e Silva (21
anos) foram acusados de assassinar os pais dela em outubro de 2002. Segundo a jovem,
ela matou os pais por eles não aprovarem seu namoro.
CRIME HORRORIZOU todo mundo. Até os assassinos na cadeia chocaram.
Mesmo no mundo do crime há uma ética a preservar, mesmo o pior criminoso tem um
interdito moral. O crime de parricídio e matricídio premeditado durante o sono é mais que
um crime; é uma viagem ao desconhecido, é o desejo de atingir um recorde supremo. Não
há nada pior. Que delito Suzane e seus cúmplices poderiam considerar mais hediondo?
Suzane está no topo, nada há além dela. Ela nos aterroriza com sua crueldade. Os dois
monstros boçais ainda dá para entender: queriam grana, motocas e tatuagens, filhos dessa
geração de shoppings e violência.
Ela, não. Precisamos encontrar explicações para ela, senão ficamos
ameaçadíssimos. O crime sem motivo nos desorganiza. Se eIa, jovem, bela e rica, matou,
que será de nós ?
O crime sujo da favela apenas nos dá medo. O crime limpo e rico nos desampara,
nos dá vertigem. Suzane nos leva à beira da loucura, mas ela não é louca. Então, ela
matou por quê? — perguntamo-nos. Isso é que fascina e apavora no psicopata: ele toca
em nosso mistério. Vizinhos e amigos sempre dizem: "Eram doces, educados, tímidos..."
Até a hora em que metralham espectadores num cinema ou matam pai e mãe dormindo.
Por isso, os psiquiatras buscam "causas", como se a vida social fosse um contrato
de bom senso, como se fôssemos animais racionais e a loucura, um "desvio". É o
contrário: a sociedade é que é um desvio. Não adianta ter ódio de Suzane; não há punição
que apague o seu crime, não há como pagar sua dívida. O inferno cotidiano que ela terá
não apagará aquele momento, sempre além de qualquer entendimento.
Mas mesmo os psicopatas precisam de uma razão maior para justificar o crime.
"Matei por amor...", diz a menina de 19 anos, fina, linda, universitária. No entanto, esse
amor que a menina invoca é outro "amor". Ela e todos nós precisamos "justificar" esse
crime. Ou seja, deve haver um motivo para se matar a mãe. Ela também precisa de um
motivo, pois ela não sente culpa porque matou. Ela matou justamente para preencher um
grande vazio em seu mundo interno, matou para atravessar um deserto afetivo, matou
porque não sentia culpa, matou por vingança de não sentir culpa, matou até para tentar
sentir alguma culpa, sentir até algum... amor.
Por isso, sua declaração nos apavora: "Matei por amor! " Matou, sim, por amor,
para conseguir um pavoroso amor por que ela ansiava. Que estranho amor é esse ?
Eu acho que ela buscava o "amor" da hora. É o amor que nos grita de dentro do
comércio, de dentro do consumo, que nos chama de c dentro de um narcisismo impossível
de ser satisfeito, um amor que consome tudo, querendo uma felicidade absoluta, com a
abolição de todos os vínculos, todas as barreiras do "Édipo", todos os deveres sociais,
Suzane quis fazer um gesto imperdoável para sempre, absoluto, livre para sempre da
condição humana, quis o sangrento incesto invertido com os pais deitados na cama onde
Ia foi (talvez?) feita.
Esse crime seria uma espécie de conquista de Poder, sim, o poder de estar acima
dos sentimentos, da justiça, o poder de viver sem ;sociedade em volta, um poder maluco
que vemos anunciado nas entrelinhas das ideologias de hoje, nas gargalhadas sem
remorso nas revistas, na abolição descarada da compaixão, na promessa da satisfação
total, na fome de ter "tudo", O poder de liberdade crua que Suzane almejou me lembra o
poder que os Macbeth conquistariam, depois de "assassinarem o sono".
A frase da peça que mais me aterroriza é quando lady Macbeth, preparando-se para
o crime, grita a Deus ( ou ao demônio) : "Unsex me!" ( "Dessexualize-me !") Ou seja:
"Tire de mim a bondade feminina, transforme-me não num homem, mas tire o sexo de
mim, para que eu seja um ser livre da diferença, livre da condição humana dividida e me
transforme num ser monobloco, com um desejo só."
Como seria o amor de Daniel e Suzane, "Romeu e Julieta" ao contrário, se tudo
tivesse "dado certo"? Com os pais mortos, grana no bolso, garupa de motocicleta, os dois
teriam uma espécie de fusão, de orgasmo contínuo, acima da vida, acima do cotidiano,
pois ninguém mais poderia existir — só eles. i
A sociedade está tão narcisista, tão excludente de qualquer solidariedade, tão brutal
no seu desejo de satisfação, que contamina até os privilegiados. A pulsão de morte anda
solta. Vivemos atacados pela brutalidade do noticiário, pelos homens-bomba, pela
estupidez da cultura que gera batalhões de rapazes criminais, sem camisa, obcecados por
uma felicidade de consumo impossível. Não somente as balas nos atingem, mas também a
imensa boçalidade da cultura.
Suzane é psicopata, mas nossa sociedade também o é. Não há explicação para esse
crime. Não adianta procurar causas, traumas. Esse crime ficará sempre em aberto.
Misterioso, como nosso destino.

Resposta a uma moça 50 anos depois

OUTRO DIA, ESCREVENDO sobre meu passado, falei de uma menina da Urca
que, de longe, eu considerava minha namorada, Silvinha, moreninha de olhos verdes.
Dias depois, recebi um e-mail assim:
"Meu amigo Arnaldo,
Lisonjeada fiquei ao ler sua coluna de 29/06 pp. por me ver citada em suas
reminiscências. Hoje, com 46 anos de casada, com dois filhos e dois netos, entristece-me
pensar que a meninada atual não pode ter a infância livre e despreocupada que tivemos e,
portanto, não terá as lembranças das peripécias próprias de cada fase. Ah, bons tempos!
Agradecendo as citações, deixo aqui um saudoso abraço. Hoje, sou a 'grisalhinha' de
olhos verdes.
Silvinha!
Fiquei emocionado com o e-mail e agora respondo.
Querida Silvinha,
Hoje, mais de 50 anos depois, vou dizer o que sentia por você. Você foi o que eu
imaginava o que seria uma "namorada". Você despertou em mim um tremor novo, a
primeira emoção do que mais tarde vi que chamavam "amor". Em uma tarde cinzenta, em
frente ao portão de sua casa, eu senti uma alegria inesquecível como se tudo ali estivesse
no lugar perfeito: a brisa leve da tarde, a paz da rua, o silêncio sem pássaros, você
encostada no portão marrom do jardim. Não sei por que, senti uma felicidade
insuportável, como se ouvisse o calmo funcionamento no mundo. Percebi confusamente
que ali, no teu sorriso, ou olhos, ou boca, estava a explicação do sol filtrado em listras
entre as folhas da árvore e a perfeição do som agudo que tirei da folha de fícus enrolada
como uma flautinha vegetal, instrumento que hoje os garotos não conhecem mais.
Esse foi um momento que me ficou nos últimos 50 anos. Depois, uma brincadeira
também esquecida: "casamento japonês", onde se escolhia uma menina a quem se
perguntava: "Pêra, uva ou maçã"; você disse "uva" e eu beijei timidamente seu rosto,
sentindo-me, em seguida, voar por cima do seu jardim, vendo as casas da Urca lá
embaixo. E, assim, você ficou de namorada oficial de minha infância imaginária.
Não sei por que, Silvinha, sempre tive fascinação por meninas que me deixavam
arrebatado e com medo ao mesmo tempo, sempre e algum modo as meninas que me
atraíam me pareciam inatingíveis, etéreas, como se fossem destinadas a outros e não a
mim... essa impossibilidade aumentava meu fascínio de pierrô.
Aliás, devo confessar hoje, 50 anos depois, que você não foi a única.
Márcia corria de bicicleta pela pracinha e só tinha olhos para o Porcolino e olhava
com desdém sorridente para minha tentativa de alcançá-la na bicicleta, e eu via suas
pernas sob a saia que ventava e a bicicleta parecia deixar um rastro de cometa de Márcia;
também, mais tarde, ainda sem te esquecer, confesso que me apaixonei por Ciomara, que,
percebendo meu interesse tímido, aplicou-se em me espezinhar, tendo eu sofrido muito
vendo-a cantar provocativamente "Vivo esperando e procurando Cervantes no meu
jardim", uma versão da música "Four-leaf clover", um sucesso na época, que ela adaptou
para conquistar Cervantes, o belo half-back do time Arsenal. Ciomara me fez sofrer,
vendo-a de mãos dadas com ainda outro, para espicaçar também Cervantes, não eu,
debaixo dos flamboyants carregados de flores vermelhas.
Devo dizer também que fui crescendo e enlouqueci de um amor mais carnal por
uma moça mais velha, Isadora, de pernas lindas no maiô roxo Catalina, alva, de boca
rubra com muito batom. Daí para a frente, Silvinha, já adolescente, comecei minhas
incursões pelo mundo do pecado, sempre instruído por meu professor de sacanagens, o
saudoso pipoqueiro Bené, que você certamente conheceu, ele que me induzia às mais
pecaminosas ações solitárias, dando-me revistinhas de mulher nua, ainda ingênuas, como
Saúde e Nudismo, cheias de moças azuis, deitadas em praias remotas. Nessa época eu já
vivia em Copacabana, na casa de meu avô, onde eu tinha mais liberdade que sob as
ordens de mamãe. Lá no Posto Seis, no escuro dos cinemas, as primeiras namoradas se
retorciam e se recusavam ao assédio a seus desejados peitinhos, me deixando enroscado
em intrincados sutiãs cheios de presilhas e elásticos, que me impediam de chegar à
maciez dos seios ocultos, enquanto tiroteios rolavam na tela e eu me embaraçava nas
terríveis teias das alças, de onde saía desesperado com dores nos rins de tanto ardor
insatisfeito.
Depois, Silvinha, continuei minha trilha pelos caminhos que se abriam para os
jovens solitários daquela época: as casas de pecado do Catete, os famosos rendez-vous, o
que me fez dividir as mulheres em "santas" e "prostitutas", ficando as santas como você
em minha memória e as outras sendo fonte de erros e sofrimentos. Todas, então, santas e
bruxas, eram intangíveis, todas impossíveis. Veja como se formavam os jovens nos anos
50 para o amor.
Não conversamos nunca, Silvinha, você nem soube que era minha namorada
secreta, e vivemos esse meio século em mundos diversos. Você deve ter sido feliz, com
filhos e netos, seguindo a trilha natural que saía do seu jardim, enquanto eu tive um
caminho mais torto, sempre meio fora das coisas que eu via acontecer.
Tenho inveja das estradas largas e sadias e talvez eu tivesse sido mais feliz, se
tivesse feito a Escola Naval como meu pai queria, e hoje fosse um orgulhoso almirante
comandando cruzadores pelos mares do meu Brasil.
Mas não posso me queixar de nada, casei várias vezes, tive duas filhas e um filho
maravilhosos, chorei muitas vezes de dor-de-corno e de desentendimento, mas não posso
me queixar, pois, além do que vivi, vejo hoje que as memórias são tão sólidas quanto as
realidades, que muitas vezes se esvaem mais rápido que aquelas. Você ficou como uma
primeira sensação do que chamam "amor". E como diz o poeta: "...as coisas findas, muito
mais que lindas, essas ficarão..."
Beijo tardio,
do Jabor.

O chato é antes de tudo um forte

ESTÁ TUDO TÃO chato no Brasil, que vou escrever sobre os chatos. Você é
chato? Nunca saberá. O chato não se sabe como tal, ou melhor, sabe sim, mas sempre tem
a esperança de sair da categoria e ser aceito como não-chato. Por isso, chateia todo
mundo. O chato é, antes de tudo, um carente. Ele vive do sangue dos outros, do ar dos
outros, o chato precisa de você para viver. Sozinho, o chato não existe. Existem vários
tipos de chatos. O mais famoso é o chato de galochas, que eu pesquisei e descobri que a
origem do termo fala do cara que sai de casa com chuva torrencial, põe as galochas e vai a
tua casa para te chatear. Há chatos masoquistas e sádicos. O primeiro é aquele que gosta
de chatear para ser maltratado: "Porra, não enche, cara!” Adora ouvir esta frase, para
remoer um rancor delicioso que valoriza sua solidão: "Não me entendem, logo sou
especial!" O chato sádico, não. Ele quer ver teu desespero e escolhe os piores momentos
para te azucrinar: "Poxa...sua mãe morreu ontem, mas ouve meu problema com minha
mulher..."
Eu não vou fazer aqui um tratado geral dos chatos, como já fez o Guilherme
Figueiredo, aliás um livro chato. Como lutar contra eles! Por exemplo, o Tom Jobim, uma
das maiores vítimas de chatos, ensinou-me um truque: "Use óculos escuros. O chato fica
desorientado quando não vê teus olhos. O chato adora ver o próprio rosto refletido em
teus olhos desesperados. Com você de óculos escuros, ele desiste e vai embora." O chato
gosta de ver teu sofrimento, por isso não adiantam as respostas malcriadas, resmungos.
Ele gruda mais. Nem adianta fingir simpatia, na esperança de que ele parta. Não há
solução. Se bem que a reza ajuda. O chato está falando e você ali lembrando a "Ave-
Maria". Te acalma como um mantra e Deus pode vir em tua ajuda.
Outra técnica que funciona muito é chatear o chato. Seja o chato do chato. Ele
pergunta: "Por que você não volta a fazer cinema? " E você retruca: "Que você está
achando do PMDB?" Faça-o falar, como o Freud agia com as histéricas. O chato falador é
mais suportável do que o chato perguntador. Depois que eu comecei a falar na TV, virei
um papel apanha-moscas para chatos. Não quero bancar o famosinho mas, veja bem
( como dizem os chatos) , o sujeito te vê na TV, no quarto onde ele está transando com a
mulher e você na tela, falando sobre o Chavez... O cara fica íntimo teu e te agarra na rua,
no shopping e gruda, como um colega conjugal. Uma vez, tinha um chato no celular
(grande tipo novo, o chato do celular) e eu tomando um cafezinho no aeroporto, oito da
manhã, indo para Porto Velho, com conexões. "Ihh... meu amor... sabe quem está aqui ao
meu lado? ... O Jabor... é e... quer ver?" Se vira para mim e: "Fala aqui com minha
namorada... o nome dela é Eliette." Esse é primo do chato-corno: "Minha mulher te ama;
dá um autógrafo pra ela... Escreve: Te amo, Marilu..." (O chato-mala nunca tem caneta ou
papel): "Escreve aqui mesmo neste guardanapo molhado..."
Temos também o chato do elevador. Estou num elevador vazio, indo para o 20Q.
Entra um cara e me olha. Eu, precavido, já estou de cabeça baixa. Há uns momentos
tensos de dúvida: "Ele ousará falar? ", eu penso. "Falo com ele ? ", ele pensa. Passam uns
andares. "Ele não vai agüentar", eu penso. Não dá outra. "Você não é aquele cara da TV?
" "Sou... ha ha...", digo, pálido, fingindo-me deliciado. "Só que eu esqueci teu nome...
Como é teu nome mesmo?" "É Arnaldo", digo eu, querendo enforcá-Io na gravata de
bolinhas. "Não... é outro nome... ah... é... Jabor... isso... porra, claro... E é você mesmo
que escreve aquelas coisas... ? " E eu penso, sorrindo simpático: "Não; é a tua mãe que
me manda lá da zona."
Tem o chato-mala, sempre no ataque. Outro dia, também no aeroporto, eu subindo
uma escada, com duas malas e o cara berrou: "Eiii, me dá um autógrafo! " Todo mundo
olhando e eu com duas malas. "Não me leve a mal, mas estou pegando o avião..." E ele:
"Poxa... tu tá ficando é muito mascarado, cara! "
Um dia, houve o clímax, a apoteose do chato do autógrafo. Fazia eu um modesto
xixi num banheiro de cinema, aquele xixi triste e pensativo, quando o cara chegou: "Me
dá um autógrafo?" Fiquei uma arara: "Estou fazendo xixi... tu quer o quê?" E ele: "Qual é
a tua? Tá pensando que eu sou viado? Enfia esse autógrafo..."
Tem muitos tipos. Tem o chato crítico. Ele te agarra na rua e começa com elogios
rasgados: "Você é o máximo; aquele teu artigo foi demais, mas... (trata-se do chato do
'mas'...) mas, você disse uma besteira horrível — o PIB da China não é aquele que você
falou..."
Um chato muito encontradiço é o chato da Ponte Aérea... Ele fica à espreita na
sala, atrás de uma coluna. Você entra... ele te vê de longe... Você pensa: "Será que ele me
viu?" Você finca os olhos no jornal, trêmulo de medo e esperança. Dali a pouco, passos a
teu lado, uma maleta pousando no chão e ele gruda: "Posso lhe dizer uma coisa...?" E pela
lei de Murphy, em geral ele estará na poltrona ao lado no avião.
Tem o chato da foto: "Posso tirar uma foto com você ? " Pronto. Lá estou eu na
rua, abraçado a um idiota de bigode, com todo mundo olhando. Flash! E o cara some num
segundo, com um rápido "obrigado". Esses só querem nos roubar a imagem... O chato da
foto sempre me deixa carente...
Há muitos tipos. O chato-altissonante, por exemplo. Grita no bar, de longe: "Ei,
labor, que que tu tá achando da guerra Israel-Árabe?" Um altissonante uma vez me berrou
na saída de um teatro: "Adoro você... ( eu sorrio, rubro de modéstia) mas tu precisa parar
falar besteira sobre o Lula, hein... ! Olha, por isso o Ferreirinha aqui te odeia! " (Ao lado
dele, está o "ajudante de chato", rindo com deboche. )
Tem todo tipo. E agora tem os "e-chatos" na internet que, aliás, botaram na rede
artigos boçais e maniqueístas, que eu nunca escrevi, assinados com meu nome. Já
puseram um em que "eu" esculhambava a Adriane Galisteu. E agora tem outro rolando,
chamado "Faz parte", onde o falso "eu" humilha aquele rapaz que ganhou o Big Brother.
Além de e-chatos, esses são canalhas e burros.

Meditações diante do bumbum de Juliana

ULTIMAMENTE SÓ HOUVE um assunto nesse bendito país: o bumbum de
Juliana Paes na Playboy .O bumbum era esperado como um messias redentor, aguardado
como a salvação do Brasil neste momento sem graça.
Políticos, bancários, eu, todos ansiávamos por esse bumbum como por um Maomé,
um profeta. O que poderia nos revelar esse bumbum ?
Corri para as bancas e comprei a Playboy sob o olhar debochado do jornaleiro que
me reconheceu e perguntou se eu não ia levar o The Economist também. "Claro, claro...",
respondi, vermelho. Chego em casa, rasgo a capa de plástico com as mãos trêmulas, abro
com uma sensação de pecado e esperança, e vejo Juliana Paes em seu esplendor. Folheio
a revista e caio numa perplexidade muda.
Antes de continuar, devo dizer que já escrevi sobre o bumbum da Feiticeira, o
bumbum da Tiazinha e continuo sem uma palavra apropriada. Não há na língua
portuguesa um termo corrente para essa parte do corpo. A palavra "bunda" tem uma
conotação pejorativa, um substantivo já adjetivado de saída. Há eufemismos como
"traseiro" ou metonímias como "nádegas", "glúteos" etc... Portanto, "bunda" é a palavra
certa...
Muito bem; com todo o respeito, a bunda de Juliana me deixou aparvalhado. Não
sei se esperava muito; só sei que fui tomado por uma funda decepção. Não sobre a beleza
da bunda, pois é muito bonita, sim, mas pelo choque de realidade que me trouxe. Afinal,
verificamos que era apenas uma bunda e não um enviado de Deus, era apenas uma moça
que nos parece gentil, romântica, bondosa como uma babá, mostrando o bumbum como
um bebê recém-nascido.
Ela sorri, parecendo dizer: "É só isso o que vocês queriam? Ora... pois aqui está
minha bundinha..." Olhei o bumbum de Juliana por todos os ângulos, e nada aconteceu,
sexual e filosoficamente. Confesso, Juliana, com todo o respeito, que imaginei cenas
eróticas comigo mesmo, com outros e nada senti... Pensei: "Estou decadente, ou as uvas
estão verdes..." Mas, não, não era isso. Bateu-me mesmo uma certa tristeza, de ver aquela
moça ali, satisfazendo nosso desejo bruto e invasivo, esse povo de onanistas e sodomitas
sempre desejando a mulher por trás. Senti um vazio ao ver um segredo revelado,
estragando com sua nudez meridiana a glória da moça da novela. Algo como água fria
num sucesso, algo como a traição contra Zeca Pagodinho, no auge de sua ascensão. O
mercado estraga o prazer, programando-o. Toda a beleza do mito é justamente seu
mistério inacessível, seu enigma não decifrado. Juliana da novela não é só sua bunda.
Ela é a doce ingênua do subúrbio, a moça generosa, dadeira, mas honesta, com seu
rosto redondo de brasileira, com largos quadris de boa mãe leiteira.
Sua nudez não tem a norma perversa das playmates típicas. Falta-lhe a crua
perversão das outras, gatas ferozes prometendo sexo selvagem. Não. Juliana tenta rostos
sacanas, mas só passa uma doçura incontrolável, faltando-lhe a catadura zangada das
punks ou sadomasoquistas.
Daí, me bateu a verdade inapelável e cruel: a bunda não existe. Só existe a "idéia"
de bunda, o conceito platônico de bunda. Isso. No caso de Juliana, o bumbum real destrói
o bumbum imaginário. Sempre sonhamos com aquele bumbum adivinhado sob os
vestidos na novela e ele tinha a multi-dimensão rica de uma metáfora. Ele era todos os
bumbuns, ele era uma promessa de vida em nossos corações. Mas, diante do bumbum
real, a vida perdeu o mistério, tudo se aquietou na paz da anatomia óbvia. Vemos, com
clareza e realismo, que é apenas um bom bumbum brasileiro, que um dia cairá, como o
PT.
Por isso, me pergunto por que a bunda é nosso símbolo? Para os anglo-saxões são
os seios, leiteiros, alimentícios. O bumbum para nós, ibéricos, é menos inquietante que a
vagina; essa nos lembra fecundidade, essa nos coloca diante da responsabilidade da
criação da vida, e até dos perigos da devo ração pela fêmea dentada e potente. A vagina é
um pênis embutido; a vagina é o "ouro" e merece respeito. Já o bumbum, por infecundo, a
reboque do corpo, tem uma imagem mais propícia para sacanagens sem perigo, além de
ser uma herança do homossexualismo deslocado dos senhores portugueses diante da
negras zulus nas senzalas.
Por isso, afirmo que o bumbum de Juliana é uma bunda romântica, familiar. No
caso de Tiazinha ou da Feiticeira, a bunda tinha vida própria. Era mais importante que as
donas.
Muitas mulheres de bonitas bundas chegam a ter ciúmes de si mesmas e têm uma
atitude envergonhada de suas formas calipígias. A mulher de bunda bonita caminha como
se fossem duas: ela e sua bunda. Uma fala e ninguém ouve; a outra cala e todos olham. A
mulher de bunda bonita não tem sossego; está sempre auto-consciente do tesouro que
reboca. A mulher de bunda bonita mesmo de frente está sempre de costas. A mulher de
bunda bonita vive angustiada: quem é amada ? Ela ou sua bunda ? Algumas bundas até
parecem ter pena de suas donas e quase dizem: "Olhem para ela também, ouçam suas
opiniões, sentimentos... Ela também é legal...”.
A bunda hoje no Brasil é um ativo. Centenas, milhares de moças bonitas usam-na
como um emprego informal, um instrumento de ascensão social. A globalização da
economia está nos deixando sem calças. Sobrou-nos a bunda... nosso único capital.

Meu avô foi um belo retrato do malandro carioca

ESTE TEXTO É sobre ninguém. Meu avô não foi ninguém. No entanto, que
grande homem ele foi para mim. Meu pai era severo e triste, mal o via, chegava de aviões
de guerra e nem me olhava. Meu avô, não. Me pegava pela mão e me levava para o
Jockey, para ver os cavalinhos. Foi uma figura masculina carinhosa em minha vida. Se
não fosse ele, talvez eu estivesse hoje cantando boleros no Crazy Love, com o codinome
Neide Suely.
Meu avô, Arnaldo Hess, foi um belo retrato do Brasil dos anos 40/50. Era um
malandro carioca — em volta dele, gravitavam o botequim, a gravata com alfinete de
pérola, o sapato bicolor, o cabelo com Gumex, o chapéu-palheta, o relógio de corrente,
seu Patek Phillipe tão invejado, em volta dele ressoava a língua carioca mais pura e linda,
com velhas gírias [Essa matula do Flamengo é turuna (forte)..] Meu avô era orgulhoso de
viver nesta cidade baldia e amada, o Rio que soava nos discos de 78 rpm, nas ondas do
rádio, o Rio precário e poético, dos esfomeados malandros da Lapa, das mulheres sem
malho e de seus sofrimentos românticos, entre varizes e celulite. Antes de morrer, ele me
olhou, já meio lelé, e disse a frase mais linda: "É chato morrer, seu Arnaldinho, porque eu
nunca mais vou à avenida Rio Branco" . Ali, onde ele me levava para tomar refresco na
Casa Simpatia, era o centro de seu mundo. Os políticos canalhas populistas que estão hoje
aí querem a volta do passado apenas pelo lado "sujo" do atraso. Mas havia também uma
poética do atraso — na Lapa, no Mangue, havia um Rio que, com poucas migalhas,
fabricava uma urbanidade pobre, bela e democrática.
Ele também me dava aulas de sexo. Contou-me uma vez que a melhor mulher que
ele teve na vida tinha sido uma "João". Que era "João"? Esse termo, ainda escravista,
designava as pretinhas tão pretinhas que tinham o pixaim da cabeça ralo, quase carecas.
Eram as "João". Pois ele me disse: "Foi no terreno baldio, ali na General Belfort... foi o
melhor nick fostene que eu tive..." (Inventara esse nome de falso inglês de cinema
americano para designar a cópula, sendo a palavra acompanhada pelo gesto vaivém de
bomba de "Flit": Nick Fostene...) Contava isso a um menino de dez anos, a quem ele dava
cigarros e ensinava ( a mim e ao Cláudio Acylino, meu primo) apegar bonde no estribo,
andando. Me apresentou sua amante, uma mulher ruiva chamada Celeste, que me beijava
trêmula e carente como uma avó postiça e que, sendo de "boa família" ( ele me falava
disso com uma ponta de orgulho), "nunca se metera em sua vida familiar oficial". Isso ele
dizia com os olhos machistas molhados de gratidão. Ou seja, ele me ensinava tudo errado
e com isso me salvou.
Quase analfabeto, vivera grudado com a turma dos intelectuais da Colombo,
babando com os trocadilhos de Emilio de Menezes, Olavo Bilac, Agripino Grieco nos
anos 20, o que lhe deu um fascinado amor às letras que não lia, mas que o fez trazer-me
sempre um livro novo, da Rio Branco, junto com a goiabada cascão e o catupiry.
Uma vez, já mais tarde, eu namorava uma moça lindíssima e virgem (claro) mas
burrinha. Reclamei com ele. Resposta: "Ah, é burrinha ? Você quer inteligência ? Então
vai namorar o Santiago Dantas! " Quando fomos aos sinistros rendez-vous, de onde nos
floresceram as primeiras gonorréias, nossos pais severos bronquearam: "Vocês são uns
porcos! " Já nosso vovô riu, sacaneando: "Poxa... boas mulheres, hein... ? "
Vovô nos ensinava a conversar com as pessoas, olho no olho. Na minha família de
classe média, celebravam-se as meias-palavras, o fingimento de uma elegância falsa, de
uma finesse irreal. Só meu avô falava com os vagabundos da rua, com os botequineiros,
com os mata-mosquitos. Enquanto minha família toda votava histericamente na UDN, em
pleno delírio golpista, meu avô pegou o chapéu, e foi votar. Eu fui atrás dele... "Votar em
quem?" "No Getúlio, seu Arnaldinho... ele gosta do povo e eu sou povo." "E eu sou 'povo'
também, vovô?", perguntei. Ele riu: "Você não; você tem velocípede..."
Ele me levava ao Maracanã, ele me levava em seu ombro para ver a estrela de
néon da cervejaria Black Princess ( até hoje me brilha esta supernova na alma), ele, uma
vez, deixou-me ver um morto na calçada, navalhado no peito ( "Parecia a fita do Vasco da
Gama", ele disse) — não me escondeu a tragédia. Me ensinou tudo errado e me salvou...
Meu avô adorava a vida e usava sempre: o adjetivo "esplêndido", tão lindo e
estrelado. A laranja chupada na feira estava "esplêndida", a jabuticaba, a mangacarlotinha,
tudo era "esplêndido" para ele, pobrezinho, que nunca viu nada; sua única
viagem foi de trem a Curitiba, de onde trouxe mudas de pinheiros. "Esplêndidas..."
No fim da vida, já gagá, eu o levava ao Jockey para ele conversar com o Ernani de
Freitas, o amigo tratador de cavalos, que lhe dava um carinho condescendente com sua
gagazice, falando de cavalos que já haviam morrido. "Hoje corre a Tirolesa ou a
Garbosa ? ", perguntava. "A Tiroleza está machucada, Arnaldo..."
Velho gagá, deu para dizer coisas profundíssimas. Uma vez, já nos anos 70,
celebrei para ele as maravilhas lisérgicas do LSD que eu tomara. Ele me ouviu falar em
"delírio de cores", "lucy in the skies" e comentou: "Cuidado, Arnaldinho, pois nada é só
bom..." Outra vez, vendo passar um super-ripongão sujo, "bicho-grilo brabo", comentou:
"Olha lá. Um sujeito fingindo de mendigo para esconder que realmente é... !
Há dois anos, na exumação de um parente, o coveiro colocou várias caixas de
ossos em cima do túmulo. Numa delas, estava escrito a giz: "Arnaldo Hess". Não resisti e
levantei de leve a tampa de zinco. Estavam lá os ossos de vovô. Vi um fêmur, tíbias, que
eu toquei com a mão. Vocês não imaginam a infinita alegria de, por segundos, encostar
em meu avô querido. Eu estava com ele de novo em 1952, sob o céu azul do Rio.
Meu avô não era ninguém. Mas nunca houve ninguém como ele.

Nosso macho feliz é casado consigo mesmo

QUERO SER FELIZ. Para isso, preciso de modelos. Há os livros de auto-ajuda, há
a felicidade oficial da mídia. Quero ser feliz e, nas revistas, vejo os meus ídolos galãs,
malhados, ricos, rindo entre modelos e apresentadoras. Quero ser feliz modernamente,
mas carrego comigo lentidões, medos, idéias antigas de alegria, traumas, conflitos. Sintome
aquém dos felizes de hoje. Não consigo me enquadrar nos rituais de prazer que vejo
nas revistas.
Posso ter uma crise de depressão em meio a uma orgia, não tenho o dom da
gargalhada infinita, posso chorar no auge de uma bacanal. Fui educado por jesuítas e pai
severo, para quem o riso era quase um pecado, a gargalhada, uma bofetada.
Para mim, felicidade era uma missão, a conquista de algo maior que me coroasse
de louros, a felicidade pressupunha "sacrifício", luta por cima de obstáculos. Olhando os
retratos antigos, vemos que a felicidade masculina era ligada à idéia de "dignidade",
vitória de um projeto de poder; vemos os barbudos do século XIX de nariz empinado,
perfis de medalha, donos de algum poder nem que fosse sobre a mulher e os filhos
aterrorizados.
Nos meus 20 anos, meu ídolo era o James Bond, bonito, corajoso, entendendo de
vinhos e de aviões supersônicos, comendo todo mundo de smoking. Mundano? Sim, mas
mesmo o Bond se esforçava, pois tinha a missão de salvar o Ocidente. Era um trabalhador
incansável que merecia as louraças que papava.
Hoje não. Nossos heróis masculinos não trabalham. A mídia nos ensina que os
heróis da felicidade não têm ideal algum a conquistar, a não ser eles mesmos. A felicidade
virou uma autoconstrução de sucesso... de bom desempenho. O solitário feliz suga o
prazer em cada flor, sem conflitos, sem dor sem afetos profundos mas sempre com um
sorriso simpático e congelado. O herói feliz passa a idéia de que não precisa de ninguém,
de que todos são objeto de seu desejo de que todos podem ser prisioneiros de seu charme;
mas ele, de ninguém. A felicidade moderna é o consumo do outro. Para o herói da mídia,
o mundo é um grande pudim a ser comido, sem nada a se dar em troca. Meu homem feliz
pode ter todas as mulheres, mas é casado consigo mesmo. Não pensem que estou
criticando isso; estou é com inveja desta leveza de ser, dessa ligeireza. Ligeireza é a
palavra — velocidade nas vivências e relações.
Assim como a mulher da mídia deseja ser um objeto de consumo, como um
eletrodoméstico, quer ser um avião, uma "máquina" peituda, bunduda, sexy ( mesmo se
fingindo) , também o homem da mídia deseja ser "coisa", só que mais ativa, como uma
metralhadora, uma Ferrari, um torpedo inteligente e, mais que tudo, um grande pênis
voador, um "passaralho" super-potente, mas irresponsável e frívolo, que pousa e voa de
novo, sem flacidez e sem angústias. O macho brasileiro tem pavor de ser possuído por
uma mulher. Não há a entrega; basta-lhe o "encaixe". O herói macho se encaixa em
heroína fêmea B e produzem uma engrenagem , repleta de luxos e arrepios, entre lanchas
e caipirinhas, entre jet-kis e BMWs, num esfuziante casamento que dura três capas de
Caras. E, ainda por cima, atribuem uma estranha "profundidade" a esta superficialidade
porque hoje, esse diletantismo tem o charme de uma sabedoria "pós-utópica".
Meu homem moderno tem orgasmos longos, ereções vítreas e telescópicas, sem
trêmulas "meias-bombas", meu homem feliz é bem informado e cínico, meu homem
conhece bem as tragédias modernas, mas se lixa para elas, não por maldade, mas por uma
crua "maturidade", um alegre desencanto. Meu homem vive em velocidade. O mundo da
internet, do celular, do mercado financeiro global imprimiu-lhe seu ritmo, dando-lhe o
glamour de um funcionamento sem corrosão, uma eterna juventude que afasta a morte.
Meu homem é antes de tudo um forte, mas um negador. Para ser feliz é necessário
negar, denegar, renegar problemas, esquecer as tristezas do mundo. Esta é a receita de
felicidade: não pensar em câncer, nem em angústia, nem na miséria do povo. Mas chega
um dia em que o herói se deprime, um dia em que a barriga cresce, o amargor torce-lhe os
lábios e o homem feliz percebe que também precisa de um ritual de encontro, algo
semelhante à boa e "velha" felicidade.
Meu homem feliz intui confusamente que a aventura da verdadeira solidão é
apavorante. Daí, ele evita que qualquer profundidade existencial possa pintar, que a idéia
de morte e finitude apareça à sua frente, senão sua "liberdade" ficaria insuportável. E, aí,
ele passa a viver um paradoxo: ligar-se sem ligar-se. Ele percebe que precisa do
casamento protetor como uma esperança de "sentido". Aí, ele se casa, entre risos dos
amigos, como se tivesse cedido a uma fraqueza. E viverá infeliz, numa eterna
insatisfação.

Blogs, twitter, Orkut e outros buracos

Não estou no “twitter”, não sei o que é o “twitter”, jamais entrarei nesse terreno baldio e, incrivelmente, tenho 26 mil “seguidores” no “twitter”. Quem me pôs lá? Quem foi o canalha que usou meu nome? Jamais saberei. Vivemos no poço escuro da web. Ou buscamos a exposição total para ser “celebridade” ou usamos esse anonimato irresponsável com o nome dos outros. Tem gente que fala para mim: “Faz um blog, faz um blog!” Logo eu, que já sou um blog vivo, tagarelando na TV, rádio e jornais… Jamais farei um blog, esse nome que parece um coaxar de sapo boi. Quero o passado. Quero o lápis na orelha do quitandeiro, quero o gato do armazém dormindo sobre o saco de batatas, quero o telefone preto, de disco, que não dá linha, em vez dos gemidinhos dos celulares incessantes.

Comunicar o quê? Ninguém tem nada a dizer. Olho as opiniões, as discussões “on line” e só vejo besteira, frases de 140 caracteres para nada dizer. Vivemos a grande invasão dos lugares-comuns, dos uivos de medíocres ecoando asnices para ocultar sua solidão deprimente.
O que espanta é a velocidade da luz para a lentidão dos pensamentos, uma movimentação “em rede” para raciocínios lineares. A boa e velha burrice continua intocada, agora disfarçada pelo charme da rapidez. Antigamente, os burros eram humildes; se esgueiravam pelos cantos, ouvindo, amargurados, os inteligentes deitando falação. Agora não; é a revolução dos idiotas “on line”.

Quero sossego, mas querem me expandir, esticar meus braços em tentáculos digitais, meus olhos no “Google” (“goggles” – olhos arregalados) em órbitas giratórias, querem que eu seja ubíquo, quando desejo caminhar na condição de pobre bicho bípede; não quero tudo saber, ao contrário, quero esquecer; sinto que estão criando desejos que não tenho, fomes que perdi. Estamos virando aparelhos; os homens andam como robôs, falam como microfones, ouvem como celulares, não sabemos se estamos com tesão ou se criam o tesão em nós. O Brasil está tonto, perdido entre tecnologias novas cercadas de miséria e estupidez por todos os lados. A tecnociência nos enfiou uma lógica produtiva de fábricas vivas, chips, pílulas para tudo, enquanto a barbárie mais vagabunda corre solta no país, balas perdidas, jaquetas e tênis roubados, com a falsa esquerda sendo pautada pela mais sinistra direita que já tivemos, com o Jucá e o Calheiros botando o Chávez no Mercosul para “talibanizar” de vez a América Latina. Temos de ‘funcionar’ – não de viver. Somos carros, somos celulares, somos circuitos sem pausa. Assistimos a chacinas diárias do tráfico entre chips e “websites”.

O leitor perguntará: “Por que esse ódio todo, bom Jabor?” Claro que acho a revolução digital a coisa mais importante dos séculos. Mas estou com raiva por causa dos textos apócrifos que continuam enfiando na internet com meu nome.

Já reclamei aqui desses textos, mas tenho de me repetir. Todo dia surge uma nova besteira, com dezenas de emails me elogiando pelo que eu “não” fiz. Vou indo pela rua e três senhoras me abordam: “Teu artigo na internet é genial! Principalmente quando você escreve: ‘As mulheres são tão cheirosinhas; elas fazem biquinho e deitam no teu ombro…’ “Não fui eu…”, respondo. Elas não ouvem e continuam: “Modéstia sua! Finalmente alguém diz a verdade sobre as mulheres! Mandei isso para mil amigas! Adoraram aquela parte: ‘Tenho horror à mulher perfeitinha. Acho ótimo celulite…’” Repito que não é meu, mas elas (em geral barangas) replicam: “Ah… É teu melhor texto…” – e vão embora, rebolando, felizes.

Sei que a internet democratiza, dando acesso a todos para se expressar. Mas a democracia também libera a idiotia. Deviam inventar um “antispam” para bobagens.

Vejam mais o que “eu” escrevi: “As mulheres de hoje lutam para ser magrinhas. Elas têm horror de qualquer carninha saindo da calça de cintura tão baixa que o cós acaba!…” Luto dia e noite contra cacófatos e jamais escreveria “cós acaba!” Mas, para todos os efeitos, fui eu. Na internet, eu sou amado como uma besta quadrada, um forte asno… (dirão meus inimigos: “Finalmente, ele se encontrou…”)

Vejam as banalidades que me atribuem:

“Bom mesmo é ter problema na cabeça, sorriso na boca e paz no coração!”

Ou: “A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios. Por isso cante, chore, dance e viva intensamente antes que a cortina se feche!”

Ainda sobre a mulher: “São escravas aparentemente alforriadas numa grande senzala sem grades”.

Há um texto bem gay sobre os gaúchos, há mais de um ano. Fui “eu”, a mula virtual, quem escreveu tudo isso. E não adianta desmentir.

Esta semana, descobri mais. Há um texto rolando (e sendo elogiado) sobre “ninguém ama uma pessoa pelas qualidades que ela tem” ou outro em que louvo a estupidez, chamado “Seja Idiota!”…

Mas o pior são artigos escritos por inimigos covardes para me sujar.

Há um texto de extrema direita, boçal, xingando os brasileiros, onde há coisas como: “Brasileiro é babaca. Elege para o cargo mais importante do Estado um sujeito que não tem escolaridade e preparo nem para ser gari. Brasileiro é um povo trabalhador. Mentira. Brasileiro é vagabundo por excelência. Um povo que se conforma em receber uma esmola do governo de R$ 90 mensais para não fazer nada não pode ser adjetivado de outra coisa que não de vagabundo. Noventa por cento de quem vive na favela é gente honesta e trabalhadora. Mentira. Muito pai de família sonha que o filho seja aceito como ‘aviãozinho’ do tráfico para ganhar uma grana legal. Se a maioria da favela fosse honesta, já teriam existido condições de se tocar os bandidos de lá para fora… O brasileiro merece! É igual a mulher de malandro – gosta de apanhar…”

E o pior é que muita gente me cumprimenta pela “coragem” de ter escrito essa sordidez.
Ou seja: admiram-me pelo que eu teria de pior; sou amado pelo que não escrevi.

Na internet, eu sou machista, gay, idiota, corno e fascista.

É bonito isso?